Itamarcia Marçal, dIVULGAÇÃO
Eu não havia completado dez anos de idade e esta imagem jamais se apagará do meu coração. Hoje tenho sessenta anos. Minha mãe e minha avó ( as pessoais que mais amei nesta vida ) estavam atarefadas com a Ceia de Natal naquela noite inesperada. Pensão da Tia Rita era o que lá funcionava, na Rua Cyra, numero 10, no bairro do José Menino, na cidade de Santos, em São Paulo, minha terra natal.
Eu, eufórica e, na expectativa, me arrumava para receber as visitas daquela noite tão especial. Já contei esta história, mas faço questão de repetir... Fui para a porta na hora que minha mãe determinou. E, começaram a chegar gradativamente nossas “visitas ilustres”.
Minha mãe ordenara - "Receba-as e faça-as entrar e peça para sentarem-se nos bancos..." Assim fiz. Só que nossos visitantes para a ceia, para minha total surpresa, eram aquelas pessoas que vinham todos os dias buscar comida, após o almoço que minha mãe servia para os seus clientes. Essas moravam na rua e minha mãe tinha este compromisso diário.
Fiquei intrigada e ainda quis me impor como filha da dona da pensão... e, arrisquei, sem muito argumento, interceder: - “olha, a minha mãe disse que estamos esperando umas visitas ilustres - voces poderiam voltar mais tarde?”
Uma mulher respondeu ( só podia ser uma mulher mesmo) - "mas quem disse que eu não sou ilustre?” Sem argumentos pela minha tenra idade, os fiz entrar e corri para avisar minha mãe que estávamos tendo uma invasão de mendigos. Minha mãe e minha avó entreolharam-se e disseram apenas: - calma, que nós já vamos descer.
Minha casa ficava num sobrado. Na parte superior, os cômodos. Na inferior, funcionava a Pensão da Tia Rita.
E, assim, aconteceu o melhor natal da minha vida. Ela desceu e recebeu toda aquela ‘população de rua’ com todas as pompas como se fosse o seu melhor cliente da pensão. Lembro-me bem que apenas perguntou aos visitantes ilustres : - Vocês já lavaram suas mãos?” Num coro afinado responderam que sim.
Cada um trouxe naquela noite mágica, um presentinho de natal dentro das suas possibilidades pessoais. Uns embrulhados em jornal, ou em papel amassado , ou mesmo sem estar embrulhado para dar a minha mãe e a minha avó. Até uma bonequinha sem perna trouxeram pra mim. Gostei dela, embora a tenha colocado de lado algumas vezes.
Aproximadamente umas 30 pessoas estiveram presentes na ceia mais requintada que minha mãe pode oferecer, com direito a garçom, diálogo e muita solidariedade. E eu passei a noite ouvindo historias ... todos falaram da sua dor , das conquistas e das perdas. As perdas vieram com muitas lágrimas. Como esquecer aquela noite? Cada um ou cada uma contou do seu jeito suas aventuras... eternizei aqueles momentos na minha alma. Nunca mais eu vivi pelo resto da minha vida uma noite de natal tão compromissada com o outro como naquela noite.
Tenho um sonho: tentar repetir esta magia aqui onde moro, em Caxias, na Baixada Fluminense. Hoje é Natal. Vou ganhar uma arvore, luzes e esperança... buscarei minhas lembranças para continuar pensando primeiro naqueles que sofrem, que precisam de um afago, de um prato de comida, para depois, se sobrar tempo, pensar em mim... mas ando muito ocupada com a agenda das mulheres brasileiras ... tomara mesmo que eu esqueça de mim!
Doe-se! BY Itamarcia Marçal
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